sábado, 26 de novembro de 2011

A especialização em Síndrome de Down é mesmo necessária?

A especialização em Síndrome de Down é mesmo necessária?

Rede SACI
05/07/2007

Artigo propõe "especialização" em cada humano, e não em conceitos gerais

Gil Pena

Eu me pergunto: o que há de tão especial assim na síndrome de Down, que precisamos de pessoas tão especializadas? Impressiona a profundidade e a abrangência dos tópicos: é preciso mesmo tudo isso? Será que entender a "síndrome de Down" passa por aí? Será que é esse conhecimento que nos possibilita intervir adequadamente?

A medicina é uma ciência que surgiu da doença. Eu sou um patologista (patologia é o ramo da medicina que estuda as doenças). A medicina, como a ciência que conhecemos hoje, surgiu quando apareceram os métodos de estudo empregados pela patologia, que é o exame macroscópico dos tecidos, principalmente em necropsias, e também o estudo histológico. As alterações morfológicas eram então associadas ao quadro clínico e davam um suporte explicativo para a evolução das doenças. A medicina, por assim dizer, surgiu na percepção de diferenças entre o normal e o patológico. E quanto mais segregado estava o patológico, mais bem caracterizada ficava a doença. Nos livros de patologia, por exemplo, uma célula neoplásica é contraposta a uma célula normal. São enumeradas numerosas características que distinguem uma da outra e a cada dia a literatura apresenta mais distinções entre elas (genéticas ou fenotípicas - morfológicas, estruturais, bioquímicas, etc). Na medicina, o quanto uma célula neoplásica é parecida com uma célula normal parece não ter importância. Não obstante, os tratamentos oncológicos, dirigidos às células tumorais, agridem também as células normais, demonstrando que há semelhanças importantes entre elas, mas não queremos ver isso.

Desculpem-me o longo arrazoado acima. A impressão que pode passar um currículo como o currículo desse curso, é a que devemos cada vez mais e melhor caracterizar a síndrome de Down como uma doença, ressaltando a sua diferença entre essa "população" e a "população normal". E sendo assim tão diferentes, teremos de ter uma população de profissionais especialistas, pois os profissionais comuns não saberão lidar com essa diferença. Será mesmo assim?

Não é culpa da organização do curso, é a medicina que é assim. A medicina é filha da Patologia. A fisioterapia, a fonoaudiologia, a terapia ocupacional são filhas da medicina, reconhecem o desvio da normalidade, o que está fora dos parâmetros. A intervenção se baseia na tentativa da correção desses desvios, sempre pelo enfoque ao defeito, ao atraso, à deficiência, pois são esses que dão a distinção tão clara ao que é dito normal.

A medicina é também, por sua vez, irmanada à ciência. A ciência produz verdades provisórias, mas se atesta como a única forma capaz de reconhecer o real, ainda que tenha que revisar isso a cada dois ou cinco anos. Tendemos a acreditar naquilo que os cientistas falam, como se o mundo só pudesse ser dito pela boca deles.

Qual seria então um currículo para compreender a síndrome de Down? Primeiro, falar de um mundo não dito pelos cientistas, que é reconhecer na pessoa trissômica, a pessoa que está ali. A ciência contemporânea, em nome da chamada objetividade, excluiu valores de sua atividade. Elimina-se a pessoa, para lidar apenas com o que pode ser medido, avaliado e comparado, de forma objetiva, clara e reproduzível.

Entendendo a pessoa que está ali, ver que as semelhanças nos processos (fisiológicos e patológicos) entre os "ditos normais" e os "trissômicos" são mais relevantes que as diferenças.

Reconhecendo a pessoa que está ali, entender que o ser humano se forma como pessoa ao longo de sua vida. Todos nascemos inconclusos. Eu mesmo ainda estou tentando me formar como uma pessoa. Dar a chance a que cada um de nós nos reconheçamos também como pessoas, é que nos possibilita nos construir como pessoas. Dar essa chance, significa confiar e oferecer condições para que esse processo de construção humana se estabeleça.

A ciência e a medicina têm que se abrir para existirem dentro da sociedade humana, como promotoras dessa humanidade. Ao estabelecer diferenças entre populações, despersonaliza a individualidade e intervêm com ênfase nas diferenças.

É preciso caminhar na direção da mudança. Não vejo a necessidade de especialistas em síndrome de Down, pois isso ressalta a diferença. Há sim a necessidade de que as pessoas com síndrome de Down caibam no nosso universo de pessoas humanas. A produção de especialistas, com base em um currículo centrado no estudo das diferenças em contraposição ao "normal" é exatamente desumanizar as pessoas com síndrome de Down. O caminho a trilhar é distinto, e feito no sentido de que vejamos a pessoas humanas que estão ali, de confiar na sua capacidade de superação, como acontece com as pessoas humanas em sua vocação ontológica.

Há que ser especialista no indivíduo, ver a cada um como único (aprender com ele, no conviver). Há que ser generalista no conceito de humano (receber o indivíduo e aceitá-lo em nosso conviver humano).

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